As letras miúdas estão com os dias contados. A partir de agosto de 2020, quando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) entrar em vigor no Brasil, a relação entre empresas e clientes exigirá novos padrões de confiabilidade e transparência. Aprovada em 2018, a LGPD previa um prazo de dois anos para ter validade plena – apenas dois artigos estavam valendo desde o princípio, que criavam estruturas burocráticas para sua implementação.
Às vésperas de ser adotada integralmente, a nova norma gera inquietação. E não é somente por mexer com a estrutura das organizações, que precisarão criar cargos exigidos pela lei, mas principalmente porque ela impõe uma lógica diferente no trato com o consumidor. Agora, ele passará a ser reconhecido como detentor dos direitos sobre seus próprios dados, a quem será preciso dar explicações sempre que solicitado.
No geral, a medida é encarada como positiva. Afinal, estabelece um regramento para um campo até então aberto a distintas interpretações. “Podemos pensar nos dados como se fosse uma fotografia: quando eu tiro uma foto de outra pessoa, de quem é essa imagem? Dela ou minha? A LGPD estabelece que o dono é o retratado, não o fotógrafo”, compara Guilherme Muniz, professor de Consumo, Entretenimento Digital e Cibercultura na ESPM Porto Alegre (RS).
A resposta do marketing
A nova perspectiva trará mudanças para os profissionais de marketing. O entendimento da LGPD obriga a criação de normas rigorosas de controle sobre a coleta e o tratamento das informações. O consumidor precisará ser avisado de maneira direta e clara sobre quais dados serão retidos pelas empresas e com qual finalidade – e ambas as coisas precisam estar conectadas. Isso quer dizer que não será possível manter um banco de dados com o perfil de clientes, a menos que sejam geradas ações específicas e diretas desse banco. Seria o caso do direcionamento de ofertas. Por outro lado, se a empresa mantiver em seu poder esses dados sem um uso justificado, poderá sofrer sanções que chegam a cifras milionárias, dependendo do porte da organização.
“Será preciso um esforço de diagnóstico para determinar quais dados serão realmente necessários. A realidade atual é que a maioria das empresas coleta dados, mas são pouquíssimas as que de fato utilizam essas informações para melhorar a experiência individual”, observa Luciana Faluba Damázio, pesquisadora da Fundação Dom Cabral (FDC), de Nova Lima (MG).
Segundo a nova norma, dados considerados sensíveis – como raça, religião e posicionamento político – exigem ainda mais cuidado no tratamento. O mesmo vale para as coletas que envolvam menores de idade, que devem ser autorizadas pelos pais. Quem já passou pela adaptação necessária ensina: “A melhor forma de evitar surpresas é fazer um mapeamento de todos os pontos em que a empresa coleta dados de seus clientes. Assim é possível criar um processo padronizado para toda a organização e em conformidade com a lei”. A dica é de Fernando Freitas, cofundador e diretor de Criação da agência digital Big House. Como tem operações em Portugal, e a legislação europeia entrou em vigor em 2018, a empresa precisou adaptar-se antes de seus pares brasileiros.
Outro aspecto legal importante é que, a qualquer momento, o cliente poderá pedir a exclusão de suas informações pessoais dos registros usados comercialmente. “Será preciso investir em chatbots, inteligência artificial e desenvolvimento de sistemas que respondam de forma fácil e simplificada e facilitem a vida do usuário em aceitar ou negar esses acessos”, prevê Jonas Matone, gerente de marketing da Bem Produtos e Serviços. A empresa, sediada em Porto Alegre e com operações em todo o Brasil, opera crédito, seguros e produtos financeiros.
As mudanças preconizadas pela LGPD respondem ao imperativo de uma governança mais responsável, que precisa se alinhar a valores como respeito ao consumidor, direito à privacidade e compliance digital. “Será muito saudável para o mercado operar nesse novo paradigma, e eu até diria mais: essa incorporação tem que ser o ponto de partida para uma empresa sentar na mesa e poder jogar”, acrescenta Damázio, da FDC.
Mudança estrutural
As empresas precisarão contratar ou reorganizar seus quadros de pessoal para atender as especificidades da LGPD. Também será possível terceirizar o serviço. Conheça os novos cargos criados com o texto:
Controlador: Pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais;
Operador: Pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador;
Encarregado: Quem faz a mediação da comunicação entre o controlador, os titulares dos dados (cidadão) e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).
Compartilhamento restrito
O novo paradigma legal brasileiro trará impacto na estrutura organizacional completa das companhias. Em especial, os profissionais da área de marketing precisarão adaptar processos e rotinas: se está fora de cogitação fazer publicidade e captar clientes sem o auxílio de dados, o desafio será unir governança responsável com criatividade para convencer consumidores a entregarem seus dados.
Na prática, a exigência de autorização inequívoca do titular dos dados (ou seja, o cidadão) para a coleta e o uso comercial de suas informações pessoais e perfil de consumo resultará num freio à venda e compartilhamento de maillings. A prática prosperou ao longo de anos graças a uma legislação vaga e, em muitos casos, contra a vontade do cliente. Tanto é assim que iniciativas recentes procuraram coibi-la, como o sistema federal “Não me Perturbe”, no qual é possível informar o número de telefone para ser descadastrado das bases de dados utilizados para telemarketing.
“A compra de bases ou seu uso sem que haja clareza na origem dos dados são práticas muito malvistas, é quase um spam. Na realidade, a lei está transformando em um ato ilegal algo que hoje já está sendo banido pelo próprio mercado”, aponta André Miceli, coordenador do MBA em Marketing e Negócios Digitais da Fundação Getulio Vargas (FGV).
A abolição do compartilhamento de maillings vai necessariamente empurrar os departamentos de marketing para uma conversa mais franca com o cliente. Como consequência provável está a maior precisão na definição do público-alvo de cada campanha. “As ações em massa convertem menos de 3% das vendas porque incluem muitos clientes que não têm o perfil procurado pela empresa. Já nas ações segmentadas, a tendência é que a conversão aumente, pois vamos estar conversando com quem já apresenta tendência maior a gostar do produto”, acredita Matone, da Bem.
Temor pelos pequenos
Embora houvesse a indicação de que em dois anos a LGPD estaria plenamente implementada, poucas empresas terminaram 2019 prontas para a mudança. Em setembro, apenas 17% das companhias consultadas por uma pesquisa do jornal Valor Econômico haviam tomado iniciativas concretas para enfrentar o novo cenário. E, muitas vezes, essas mudanças aconteceram porque as empresas atuam simultaneamente nos mercados brasileiro e europeu, onde a LGPD já é uma realidade. “Estima-se que em torno de 5% das empresas fizeram o movimento pensando especificamente no mercado do Brasil”, pontua Miceli, da FGV.
Esse tipo de erro foi percebido por Fernando Freitas em sua experiência ao levar a Big House para Portugal: “A demora em iniciar o processo de adequação à nova regulamentação foi um grande problema”. O cenário serviu de argumento para o deputado federal Carlos Bezerra (MDB/MT), que apresentou no fim de outubro um projeto de lei (PL) concedendo mais dois anos para que as empresas se adaptem à nova legislação.
Em sua justificativa, Bezerra menciona que 71% das empresas que ainda não haviam feito qualquer movimento para se adequar à LGPD eram de grande porte e 33% tinham faturamento anual superior a R$ 1 bilhão. “São empresas que, em regra, dispõem de assessoria jurídica e recursos financeiros suficientes para investirem em ações de adequação às novas obrigações estabelecidas em lei”, esclarece no PL. Até o fechamento desta edição, em dezembro, o projeto não havia tramitado nas comissões prévias à votação em plenário.
Amor, dinheiro e glória
O segredo para convencer clientes a concederem acesso a seus dados é a sedução. “O marketing vai ter que ser mais criativo para conquistar esse engajamento, o que pode ser feito através de estratégias como o amor, o dinheiro ou a glória”, ensina Miceli, da FGV. Oferecer benefícios financeiros em troca dos dados é uma das formas mais comuns de melhorar a experiência do consumidor, que vê utilidade em ceder seus dados à companhia. Embora os descontos possam esbarrar no limite do caixa, programas de milhas ou de soma de pontos para troca por prêmios estão se popularizando e tendem a ganhar mais relevância.
Não deixa de ser a aposta já feita pelas redes sociais. Elas oferecem ao usuário um serviço que, não fosse a entrega de dados pessoais, possivelmente seria pago. Já a lógica de engajamento por status pode ser ilustrada com benefícios que façam os clientes se sentirem especiais: um cartão de crédito de cor diferente é um bom exemplo. Novamente, as redes sociais são um bom exemplo. Basta lembrar do status de “prefeito” adquirido por quem fizesse check-in com frequência na mesma página do Foursquare.
Por fim, a regra do amor é a aposta de uma marca para arrebatar seguidores – feito no qual gigantes como Apple e Google são experts. Mas não é preciso ser um benchmark mundial para despertar a sensibilidade do consumidor. O ponto crucial aqui é engajar pela excelência na prestação de serviço, o que faz com que os usuários desejem participar do negócio. Há também truques interessantes: criar concursos entre seguidores nas redes sociais pode trazer bons resultados. As ações podem envolver fotos ou frases associadas a um sentimento que se deseja despertar ou espalhar. “A comunicação feita em função da causa é o que move muitas organizações, como o Médicos Sem Fronteiras, que depende de doações para se manter. É modelo de comunicação que se baseia no amor”, diz Miceli.
Outra boa dica é se associar a serviços: por que não oferecer aos clientes a previsão do tempo com base em dados de geolocalização? “As empresas que trabalham com inbound marketing tendem a se favorecer com a LGPD, pois o modo de fazer marketing será através da produção de conteúdo de valor para cada tipo de consumidor”, salienta Matone. Para ele, segmentação, experiência e layout serão os maiores aliados para criar produtos que os clientes realmente amem. “O custo por lead deve aumentar, mas haverá, ao mesmo tempo, um aumento na assertividade nas vendas.”